terça-feira, 6 de junho de 2017

O Grande Circo Místico


O Grande Circo Místico


Hoje Tem alegria?! Tem Sim senhor!

Circo, lugar do primeiro susto e da primeira paixão. Quadro que se projeta na memória, lembrança irretocada que mantemos com a gente por toda a vida.
Para quem vai assistir ao espetáculo teatral “O Grande Circo Caipira de Cornélio Pires” , especialmente para os mais velhos, não se pode deixar de evitar em retornar aos seus tempos de infância e para os que ainda são crianças é inevitável o encantamento.
Baseado nas obras literárias de Cornélio Pires, um multiartista que viveu de 1884 à 1958 e que impulsionou a difusão da cultura caipira em todo o Brasil, o grupo teatral Barracão da Vó remonta em seu espetáculo a história de um dos mais sensíveis contos desse artista singular.

Hoje tem espetáculo, senhoras e senhores! - Anunciam os altos-falantes enquanto a pequena banda executa um dobrado. Os caminhões desfilam pela cidade, com seus palhaços fanfarrões, suas sedutoras dançarinas distribuindo sorrisos e acenos enquanto coloridos malabares sobem aos céus.  O circo chegou fascinando velhos e moços, povoando o imaginário de todos. O céu agora é de lona, lona de cores vivas e berrantes, tradução da alegria e da espontaneidade. E as palmas começam e os pés batem no piso da arquibancada, expectativa, frio no coração, que coisa inesperada sairá de trás daquelas cortinas?
É o circo Macário que chega triunfante em uma cidadezinha no interior de Minas.
O mundo fascinante do Circo agora armou sua lona no teatro e se revela das cortinas uma delirante profusão fabulísticas de contos caipiras, mesclados entre diversos números circenses, a história baseada no conto Maria, Credo! de Cornélio Pires.  
Mais uma vez a temática caipira traz para o teatro a tradição circense. Numa viagem em que a peça encontra o Circo Macário, ambos dando as mãos para adentrar o território dos sonhos impossíveis. Era nos tempos áureos do picadeiro. E na lembrança da família Macário acende o fogo de luz sobre o trapézio, os malabares estão suspensos no ar novamente, o grande mágico tira da cartola uma surpresa e o circo de alma ilusionista prende a atenção de todos, resistindo através do tempo. O artista vence mais um desafio, seguem os trapezistas, o tigre indomado, o atirador de facas, o engolidor de fogo, a contorcionista de mil pernas e mil braços, o homem mais baixo do mundo, a coisa mais estranha do planeta, o cão que sabe falar, a lágrima do palhaço apaixonado. Eis o mundo do circo, falando de todas as coisas, querendo a vida melhor.
Mas um dia veio o cinema e levou para longe o público e as suas crianças. Ninguém mais se interessava pelo trapezista, pelo malabarista, pelas dançarinas murchas e sem brilho. A lona era um remendo que ao cair da noite mal cobriam as estrelas. A magia se foi. O vazio, trazido pelo vento, derruba o Circo Macário, que sem forças contra a deslumbrante novidade do mundo que se modernizava, se arroja na mais profunda decadência moral e financeira. Os palhaços, outrora faceiros e gargalhantes, estão estampadas nas suas faces a maquiagem borrada pelas lágrimas e a  tétrica expressão de quem só esperava por um fim. Tinham vergonha de si. Ninguém mais tinha paciência para nada. O mundo se ocupava com outra coisa e hoje o povo passa e ri.
Tão tétrico o momento que poderia facilmente ser interpretado e explorado por Augusto dos Anjos em Decadência ou por Raul Leôni, Fernando Pessoa e Charles Baudelaire como uma fonte idealista, um farto banquete de inspiração para Edgar Allan Poe.
Agora era acender a luz das lamparinas, entre figurinos rotos e mãos trêmulas, ainda valia a pena sonhar! Mas até mesmo para sonhar não havia forças. Era a realidade pungente e cruel de um mundo que se tornara vil e ingrato. Mas as lembranças, as boas lembranças, essas sim lhe serviam de elemento encorajador para seguir... Seguir sabe se lá Deus para onde!
Lembranças de um paraíso chamado Circo, e o que viam era um espaço pequeno demais para tanta alegria; havia luzes, brilho, som, uma festa enfim. O coração de cada pequenino estava acelerado pela expectativa, e apertavam a mão dos pais com força, como se pudessem adiantar o relógio com esse movimento.
A festa recomeçou!
E felizes desfilaram reis e rainhas, na figura cômica dos palhaços,  na imagem trágica do trapezista, na ternura que pairava no olhar das dançarinas e no equilibrista, desfilaram enfim, aqueles que são reis da alegria, que conseguem comover uma criança, enternecer um velho ou fazer os dois rirem.
Ontem aqui, havia um parêntesis do mundo, um pequeno espaço onde o que prevalecia era o ser humano, onde não se falava em guerra, em crianças abandonadas, porque nenhuma estava abandonada, onde a política não existia, porque a política não é mais uma ciência de homens, apenas uma máquina de fazer monstros; ontem aqui, era possível ser feliz. As crianças estavam com seus pais, coisa tão rara em nossos dias, e os seus rostinhos brilhavam como se fossem fluorescentes, talvez porque se sentissem importantes, privilegiados pela presença de pessoas que se dedicavam apenas a fazê-las sorrir.  Os homens, sempre tão compenetrados em fazerem juz ao sexo masculino, ontem aqui, eram apenas "gente"; gente que ri, que chora, que sofre, que perdoa, gente que vive. E as mulheres... Ah! Benditas eram! Estávamos todas ali, sem panelas, sem relógios, sem vassouras, só com a pequena parte que lhes cabe de distração. E tiveram também seus reis e suas rainhas, tiveram também suas fantasias...
 E hoje os Macários voltam. E havia um espaço tão grande!  Impressionante como a tristeza tem poder sobre o tamanho! Como ela pode transformar um cubículo em infinito!
Voltam trapezistas, dançarinas, luz, cores, magia, misticismo... Reacendem os palcos. Som de aplausos! Bravo!
As vozes e as imagens do passado estão para sempre perdidas. Mas a lona ficou. E agora, dentro das sombras, eles sonham com seus mortos. O silêncio... As poucas luzes ajudando os trabalhadores a destruírem o que sobrou da alegria. As pessoas cabisbaixas andando pra lá e pra cá. A geral sempre tão frenética, amontoada num canto, entulho apenas. O trapezista, nada mais que um homem, igual aquele que senta no bar e bebe cerveja todos os dias. A moça da lira, sentada na porta do circo, sanduiche na mão... E o mágico, de mãos tão suaves, movimentos ágeis, de repente está ali, carregando cadeiras, consertando motores, não é mais um rei. O rei está na mala, carregada com esforço pelo acrobata suado.
Tudo acabou. O circo acabou.
Mas um dia uma nova esperança entrou no picadeiro empoeirado. Ela veio pelas mãos de um misterioso matuto que propõe a família Macário uma saída para suas dívidas e desolamento. Há um novo alarde na cidade próxima quando, de repente, o circo Macário anuncia que a sua nova atração prometia grande acontecimento. E o moleque jornaleiro,descalço e de pernas magras, afoito e risonho, anuncia que a uma  misteriosa e mística figura estava na cidade: O Come Gente! 
Seria o ressurgimento da glória do Circo Macário?
Entretanto a história da decadência desse Circo Macário apenas serve como um pano de fundo para ilustrar a força do caipira brasileiro, pelo ponto de vista de seu maior incentivador, Cornélio Pires, pelo prisma de alguns de seus contos e ao que no final ele sempre se apresenta como um vencedor, quase um semi-herói. Não vemos um caipira de baixa autoestima e tampouco como um ente de estimulo para preconceitos. Como por exemplo, a dualidade latente e distinta de dois opostos de uma sociedade dominante, na cena Chá para Dois, duas figuras surreais e sinistras representados por um advogado e um médico, menosprezam a figura simples e humilde do caipira sentado diante de uma fogueira e que lhes oferece um chá. Sem metodologia ou qualquer pretensão acadêmica, Cornélio Pires, com sua vivência junto ao caipira de São Paulo, acabou criando a sua própria teoria sobre os mesmos. Tentou descrevê-lo, tal como é, reagindo ao pessimismo de Monteiro Lobato, (o mesmo que humilhou a artista Anita Malfatti) por exemplo, conforme escreveu em Jeca Tatu, que apresentam o caipira, o camponês brasileiro coberto do ridículo, inútil, vadio, ladrão, bêbado e idiota. Esse caipira – assim defende Cornélio Pires – é nascido “fora das cidades, criados em plena natureza” e, por isso, se tornam “tímidos e desconfiados ao entrar em contato com os habitantes da cidade”. Mas são expansivos , alegres, folgazões e francos quando “em seu próprio meio, onde, revelando rara inteligência, são mais argutos, mais finos que os camponeses estrangeiros, referindo-se aos colonos imigrantes. E completa: Dócil e amoroso é todo camponês; sincero e afetivo é o caipira.
Porque para Cornélio Pires não bastava apenas usar do academicismo literário para escrever seus contos e causos apenas pelo pretexto de registrar uma cultura distinta através de livros para estantes de intelectuais, dentro de uma esfera confortável e discreta como muitos escritores de sua época o faziam. __Não!__ Era preciso ir além, para os confins do Brasil onde havia um povo esquecido e menosprezado. E para um artista, militante ou quase um mártir da causa caipira, essa gente precisava ser vista, reconhecida e respeitada em sua simplicidade, e dela extrair o que de belo e bom eles poderiam nos oferecer. Era preciso ter uma voz.  
E segue o Teatro e o Circo entre o divino e o terrestre. Real, surreal, com sua gente que não parece gente e sim, uma tribo de anjos, de criaturas de éter, de sujeitos fora do tempo e do espaço.
Coroa essa quadrilogia a celebração dos dez anos de um Grupo de Teatro que traçou um perfil bastante peculiar de pesquisas e atuações, de linguagens e estéticas que merece ser apreciada e respeitada, sobretudo quando os mesmos que o regem para que todo um espetáculo se torne  real e seus atores tragam a vida seus personagens, sejam eles de que natureza provir, são oriundos pela mais pura paixão de artista em constante núpcias com o palco. A peça consegue remeter-nos a aquele mundo mágico que povoou o imaginário de tantas crianças de outrora e faz os olhos dos mais velhos marejarem de saudade. A fragilidade da estrutura material do circo se mescla à fragilidade emocional dos personagens da família Macário, em crise existencial, em um momento depressivo em que quer largar tudo e mudar de vida (quantas vezes não nos sentimos assim?). E o espetáculo tem momentos do mais mágico lirismo: cenas montadas com sabedoria e experiência, provocando a reflexão, tocando até em Brecht e lembrando em alguns momentos a obra prima do cinema indiano no filme Mera Naam Joker, de Raj Kaapor que narra a história de um palhaço que deve fazer o público rir a custa de suas dores.
Para o final, a peça deixa costumeiramente a sua mensagem maior: o que vale a pena é a esperança. Esperança que retornou à família Macário quando a figura do Come Gente lhes devolveu os sonhos! O teatro e o Circo, de mãos dadas pela grandiosidade de seus espetáculos, vêm celebrar juntos a arte de sonhar acordado e manter viva a chama de nobres artistas que promovem o riso e a alegria.
Palmas para o Circo, gargalhada, esperança, nobreza, turbilhão!
A alegria sempre anuncia que a vida foi bem sucedida, que fez progressos e venceu. Toda grande alegria tem uma nota de triunfo. Descobrimos que onde existe alegria floresce a criação e quanto mais rica for a criação, mais profunda a alegria.

O Grande Circo afirmação da vida!