quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Amor que Mata


O amor não precisa das cerimônias da Igreja para sagrar-se: ele é por si mesmo divino, pairando acima de todas as maiores aspirações humanas.
Basta que entre dois corações, pólos de eletricidade contrária, a centelha transformadora se faça, para que toda uma grande luz irradie, abrangendo a vida e projetando-se na própria eternidade.
Nascidos em países diversos e distantes, encontraram-se, divinamente impelidos um para o outro, nesta Babel brasileira __São Paulo. Raimundo já era casado; Teresa  independente ainda. Como se fossem dois abismos, atraíram-se violentamente para a mesma desgraça. Raimundo abandonou a casa; Teresa viu-se expulsa pelos pais...Que importa? O amor paira acima do sangue, muito além das conveniências sociais. Uniram-se e tiveram a mais vulcânica das paixões humanas a dourar a miséria pecuniária que logo veio, a colorir de relâmpagos multicores a infâmia que os invejosos tentavam distender em redor dos seus nomes.
Mas um dia, após vários anos de mútua glorificação interior, Raimundo __dominado não sei por que destino, arrastado não sei por que fraqueza de alma __ abandonou-a!
Teresa quis transformar em fios de aço as suas fibras de mulher apaixonada. Quis e tentou. Resistiram  as fibras por algum tempo, mas, num fortuito encontro em um teatro qualquer, a paixão derreteu o aço daquelas fibras e a mulher explodiu numa cena de loucura passional.
___Amigo! Você abandonou-me... Não vou recriminar-lhe a liberdade dessa ingratidão: eu nunca fui sua esposa. É verdade que por você abandonei o meu lar tranqüilo, sacrifiquei a minha honra, tive as maldições de meus pais, cobri-me de infâmias do público... Isto, porém, o que era em face do amor que lhe consagrava?
Você abandonou-me... fez bem! Os homens são como as feras: depois de saciados, enjoam-se das vítimas que fizeram. Só a mulher não é assim, porque só a mulher não se sacia. Não quero recriminar-lhe o direito que tinha de abandonar-me... Desejo apenas fazer-lhe um pedido: quero passar, em sua companhia, a tarde de amanhã. Peço-lhe isto pela recordação de todos esses momentos inesquecíveis de quando vivemos juntos... Peço-lhe isto em nome da solidão aflitiva em que me encontro só e amargurada...
Acendendo ao pedido, passaram juntos a tarde inteira do dia seguinte, um buliçoso domingo de calor. Tomaram um carro fechado e mandaram rodar pelos lugares mais distantes e silenciosos.
Teresa derreara a sua linda cabeça no ombro dele, com os lábios quase em seus ouvidos, nessa atitude de quem vai fazer confidências. E foi-lhe recordando o seu romance desde o momento em que se amaram até aquele instante em que ele fugira sem razão nenhuma. Reviveu os dias de maior paixão, os sacrifícios suportados, as amarguras curtidas, toda essa trama violenta de paixões em que o Destino contristara o seu coração de mulher. A sua voz, a principio, forte, foi-se aos poucos debilitando, nublada por soluços que tentavam afogá-la. Depois, na violência da sua amargura, já não era  mais uma voz humana: era apenas um ciciar de palavras que passavam entre lágrimas. A narrativa o havia emocionado, porque, afinal, também ele a amava e a queria ainda e, num momento de irreprimível ternura, arrastou-a para o seu peito, e violentamente a comprimiu de encontro ao coração... As bocas procuraram-se com aquela avidez que só a saudade do beijo consegue despertar nos lábios dos amantes.
Sentiu, porém, que o corpo da amada se abandonava numa rapidez de queda. Esforçou-se por suste-la e, num solavanco do automóvel, rolaram ambos do assento. Reergueu-se e colhendo todas as energias de que dispunham os seus músculos exaustos, tentou fazê-la assentar-se...O corpo da mulher resistia: os músculos se travavam todos, tombando para traz a cabeça inerte...
___Chofeur! __toca depressa para uma farmácia! __gritou Raimundo.
Alguns segundos depois, com a voz violentada pela comoção, deu outra ordem:
___Pára... para a farmácia, não!... para a Central!


Na sala da polícia, diante dos repórteres, escrivães e curiosos, o delegado conseguiu apenas esta elucidação consagradora da tragédia:
___O senhor matou-a?
___Sim, matei-a!
___Com que a matou?
___Com amor! 



Santiago Ribeiro, Sorocaba 09/11/2011



Um comentário:

  1. Amor
    Quem começa ler esse conto, jura que terá final feliz. E, em alguns parágrafos finais, tudo muda. O amor bom é aquele que dá leveza, alegria. Mas a linha que o divide com a loucura, a obcessão e a posse é muito tênue. Há de empenhar-se no relacionamento saudável e no amor que vivifica, e não na loucura que mata.
    Bjus

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