sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Recordando



MANGUEIRA 1999
O SÉCULO DO SAMBA


Não havia música nem dança. No Carnaval, o povo saía às ruas em correrias. As pessoas sujavam-se umas às outras com farinha. Os nobres se trancavam em casa para fugir da galhofa. Era o Entrudo a dona da festa nos carnavais dos séculos XVIII e XIX. O Rio de Janeiro sempre esteve de braços abertos para a alegria. A folia carioca começa no mistérios das máscaras. Foliões colorem as ruas, escondendo-se atrás de disfarces como pai-joão e o doutor-da-mularuça. Nos salões, príncipes, pajens, bailarinas, dominós, arlequins, diabinhos e polichinelos.

No comecinho do século XX, depois que o prefeito Pereira Passos derrubou boa parte da velha cidade colonial e a transformou numa réplica de Paris, o Rio e o Carnaval "civilizou-se". O entrudo extinguiu-se por completo __ em vez de água e objetos fétidos, as pessoas agora jogavam confete de verdade e serpentina uma nas outras e se esguichavam com lança-perfume, muito mais charmosos. Os novos bondes elétricos se transformavam em carros alegóricos e viajavam carregados de foliões de pé nos bancos e estribos. Em 1900, o Carnaval ganhou a primeira canção de encomenda para a festa, a marcha-rancho "Ó Abre-alas", da pianista e maestrina Chiquinha Gonzaga. E o acaso criou uma tradição que se estenderia por anos: o corso motorizado na recém-inaugurada Avenida Central.

Agora tente visualizar: uma mini-África enquistada no Rio quase europeu de 1900. O coração desse enclave era a Praça Onze de Junho, nas imediações de onde fica hoje o Sambódromo. Na virada para o século XX, ali era o reduto das "tias" baianas__ uma constelação de negras gordas e despachadas que, ao chegar ao Rio alguns anos antes, vindas da Bahia, logo dominaram o panorama. A mais célebre destas baianas era Tia Ciata, uma mulata cuja influência na cultura do Rio talvez mereça enciclopédias. Na sala de sua casa na Praça Onze, Ciata admistrava seus quinze filhos, os amigos e os convidados, e animava os choros tocados por, entre outros, um garoto de flauta chamado Pixinguinha. Ciosa de seu prestigio, Ciata era amiga de jornalistas. Eles iam aos seus pagodes atraídos pela música e perceberam quando os batuques e cantorias, enriquecidos por flautas, violões, cavaquinhos e uma nova e criativa percussão, começaram a revelar a influência das melodias e harmonias européias. Não por coincidência, algo parecido estava acontecendo na mesma época em Nova Orleans, do que resultaria o jazz. No Rio, era o samba que entrava em trabalho de parto __não mais como um sinônimo de festa na comunidade negra, mas como um novo gênero de música. Era só o que faltava, no bom sentido. Para a música brasileira, o surgimento do samba valeu como a descoberta de um novo continente. Para o Rio, foi como se a cidade tivesse finalmente encontrado sua voz. O primeiro samba a fazer sucesso com a palavra samba impressa no disco, "Pelo Telefone", foi composto __ onde mais? __ na casa de Tia Ciata, por três jovens músicos: Donga, João da Baiana e Heitor dos Prazeres.
Era o Século do Samba. Cem anos da história do carnaval brasileiro que a Mangueira contaria em 1999 __ então final do faustoso século XX __ e assinado por Alexandre Louzada. É natural que diante de tantos fatos e tantos acontecimentos durante o século do samba fossem cuidadosamente esmiuçados para desenvolver este desfile. Não era difícil, pois afinal a própria Mangueira é uma das porta-vozes de todo este registro e dona de um legado de respeito, assim como a Portela, Império Serrano, e outras, claro. Sinopse escrita, barracão brilhando, Louzada confiante, e a Mangueira uma das campeãs de 98 encerraria o século buscando seu bi com chave de ouro. Mas algo sobrenatural aconteceu naquela noite de segunda-feira durante o desfile da verde e rosa. De repente, materializando-se do além para participar da folia e surgindo envoltos a uma penumbra de fumaça, vimos estarrecidos algumas personalidades, baluartes do samba em pessoa, a qual uma geração inteira de sambistas reconheceria com muita intimidade. Zé Pereira? Pierrôs? Colombinas? Laíla? Nada disso __ eram figuras que já haviam nos deixado há muitos anos, mas que, evocados e incorporados na avenida seja lá por que força mística, estavam de volta para despertar uma comoção coletiva que ficou para sempre eternizado em nossos corações. Ora quem não lembra de Candeia, Cartola, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Carmem Miranda, Noel Rosa, Natal, Pixinguinha, Sinhô, Donga, João da Baiana, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Tia Ciata e Mestre Fuleiro? Lá estavam eles de volta na comissão de frente da Mangueira. E por onde passavam eram lágrimas na certa. Um que de sobrenatural. Um misto de saudade, reverência, alegria e orgulho arrebentavam os corações. E quanta lágrima... quantos arrepios! Mas houve um tempo de êxtase __ a qual para mim só se perderia ao orgasmo__ que podemos dizer o supra-sumo desta comissão. Foi no momento em que os "fantasmas" formavam uma roda e no centro dela depositavam todos os pertences dos finados sambistas: como o óculos de Cartola, a cadeira-de-rodas de Candeia, o sax de Pixinguinha __ e todos estendiam os braços sobre eles como que se desincorporando e devolvendo aos céus a alma destes ilustres. Arrepiou?
Mas o encanto acabou. Tudo bem, é falso, é teatro, é fantasia. A caracterização não passa de máscara de silicone e resina. O andar, as danças e os gestos não eram naturais, eram coreografias ensaiadas por Carlinhos de Jesus. Mas nem por isso deixou de comover porque afinal de contas era Carnaval e como sabem toda nossa fantasia é cercada de uma mística alegria e prazer a qual da sentido a Folia. Eles estavam entre nós, mesmos que sejam caracterizados mas o amor que temos as escolas de samba e ao carnaval transcendeu a matéria e caiu fulminante na alma de cada sambista. Tanto que por um momento tudo parecia real. E valia a pena chorar, sorrir, se emocionar, brincar, mesmo que por apenas 80 minutos. Mas foi eternizado para que lembremos sempre destes baluartes a qual fizeram história no século que viveram, o seu século do samba. E é sempre bom recordar , olhando com orgulho para trás, levando a diante o legado que deixaram ao novo século que entrava.

E Feliz ano 2000, um novo século do samba!

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